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segunda-feira, 9 de outubro de 2023

Um dos segredos de Porto é desvendendado

Fernando de Castro dedicou a vida à caça de tesouros 

Única foto de Fernando de Castro 


Elegante, fino e sincero. Se podemos conhecer um pouco a alma de alguém pela sua casa, com certeza pode-se dizer que Fernando de Castro devia ser um homem elegante e fino. E sincero,  pelas caricaturas ali expostas.  Antes que você 'dê um Google' para saber de quem falo, um alerta: Fernando de  Castro viveu de 1889 a 1946. Morava na rua Costa Cabral, 716, no Porto, e sua casa tornou-se um museu doado para Porto, como era seu desejo. 




Algumas caricaturas de Castro

Fui lá em um sábado pela manhã e, para variar, cheguei atrasada (juro que estou me esforçando e foram 'apenas' cinco minutos dessa vez!). O grupo de 10 pessoas formado em sua maioria por norte-americanos já estava no hall de entrada ouvindo as explicações em inglês de Ana Anjos Mântua, coordenadora da Casa Museu Fernando de Castro, que pertence ao acervo do Museu Nacional Soares dos Reis.  Por um instante pensei que havia ingressado em uma igreja tal a quantidade de peças sacras em meio a outras pagãs. 

Hall de entrada, foto de Adriano Teixeira (jornal Público)

Mântua na sala de caricaturas feitas
por Fernando de Castro

Durante uma hora, visitamos os três pisos com cinco lances de escadas.  Mas de onde vieram todas as peças? Quem era essa figura que comprava talhas - obras de arte em madeira - e as instalava em todos os espaços da casa - todos mesmo? Já pensou em uma enorme porta talhada em madeira fixada no teto? E em belas portas sem fechaduras e que não davam a lugar algum? 

Uma das surpresas: porta no teto 
 
A cada lance, mais peças

Filho de próspero comerciante portuense,  trabalhou com o pai e, após sua morte,  seguiu à frente da firma, mantendo a mãe e irmã. Tinha 30 anos, era solteiro e integrava a burguesia rica do Porto. Poeta e escritor sem grande destaque, dedicou sua vida a colecionar peças que dispunha em sua casa, aparentemente sem ordem determinada, tornando a visita hoje em dia um desafio para manter-se a atenção nas explicações e não tropeçar nos caminhos percorridos entre escadas e cômodos. Mântua explica que na época era aplicado o conceito "horror ao vazio". Então, nenhum espaço de parede - mesmo o menor que fosse - podia ficar à mostra -e estava em sintonia com o culto dos estilos nacionais e das antiguidades em finais do século XIX. 

Seu quarto e a paixão pela talha 

A curiosa vida de Fernando de Castro e seu acervo chamou a atenção de jornalistas que fizeram uma visita por ele guiada, o que rendeu matéria no Jornal de Notícias em 23 de maio de 1944, a única talvez a retratar seu pensar e sentir. Após sua morte, não há registros nem arquivos nem inventários do que está exposto no Museu, o que exige pesquisa e catalogação tendo Mântua à frente de um hercúleo trabalho. 

Então, vamos dar um salto para aquele tempo ainda em guerra e abrir espaço para Castro dar as boas-vindas aos visitantes:

"Alguém que realize uma obra, tão pequena que seja, como neste caso, não descansa, enquanto a não comunica. Toda a obra tem no artista o seu elemento criador e tem no público o seu elemento definitivo, e a obra não surgirá, não resultará senão assim. Qualquer realização sem crítica não terá o Sol que ilumine e eis porque, vossas excelências neste dia, encheram de luz a minha casa, da luz em que brilham as maiores fulgurações da literatura, da ciência, da oratória e da arte portuguesa. Se a alta sensibilidade de vossas excelências dentro da sua tolerância e generosidade, encontrarem nesta casa um momento de emoção, eu terei bendito a hora em que nela pensei e recolhido para meu prêmio e consôlo a mais enternecedora alegria. (...) Estou certo de que o gênio dos artistas maravilhosos, de tantas e tantas gerações, nesta casa representados, também neste momento, agradecem, do além, o culto e o amor de vossas excelências pela sua obra gloriosa" (sic).

Mântua e Castro têm algo em comum: a paixão pelas histórias. Se ele colecionava peças, Mântua dedicou sua carreira ao patrimônio histórico. A semente da curiosidade foi plantada em menina, aos cinco anos, quando seu avô, aposentado, a levava para passear nos museus. Cursou História da Arte, pós-graduação em arte, patrimônio e restauro pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Trabalhava no Mosteiro dos Jerônimos antes da pandemia, quando veio para Porto estar perto do filho e nora.  

Mântua comenta que a maior parte das visitas guiadas são feitas por portugueses que desconheciam o acervo da Casa-Museu Fernando de Castro. Após criar redes sociais e organizar a divulgação, o volume de visitas começou a aumentar e o local foi tema de reportagens na imprensa. Para ela, "é muito importante criar laços com a comunidade e as redes sociais vêm ajudar muito para isso". 


Ana Anjos Mântua 

História é a vida de Mântua. Além de escrever críticas sobre exposições e artigos, Mântua publicou o romance histórico "A americana que queria ser rainha de Portugal". Após extensa pesquisa inicialmente feita para uma biografia, ela - a conselho da editora - aceitou o desafio e escreveu o romance  empolgante sobre a norte-americana Nevada Hayes, uma das figuras mais comentadas pela imprensa internacional e pela aristocracia europeia da época. Nevada tornou-se mulher do príncipe Dom Afonso, filho de Dom Manuel, último rei de Portugal, que recebeu a notícia do casamento com recusa e indignação em seu exílio na Inglaterra. Com o casamento, assumiu o título de duquesa do Porto, princesa de Bragança. Morreu em 11 de janeiro de 1941, já viúva de 'seu amor' D. Afonso e tendo conseguido a herança por direito do Estado português. 

Primeiro romance
histórico de Mântua

Mântua, prestes a aposentar-se, está trabalhando em uma biografia (que ainda é segredo!) e curtindo ser avó de um menino com um mês de vida. Entusiasmada com a perspectiva da aposentadoria em breve, Mântua quer viajar mais como explica:

"A vida de quem se dedica a pesquisas ou a museus é muito boa, mas é solitária e reclusa. Estamos dias inteiros à frente de uma tela de computador". E a escrita? "Com certeza também, e ao abordar história, você está cercada de algo que foi, não do que será nem do que é hoje".

A conversa caminha-se para o final, no café perto do Museu, cujo dono é carioca e jornalista (mundo pequeno, não?). Para terminar, o que ela diria para quem viria morar em Portugal? 

"Na minha opinião, quem se muda para outro país deve tomar esse país como seu e não criar uma comunidade à parte. Aprender o idioma é o início. Depois, visitar museus, bibliotecas, ir ao teatro e conversar. O brasileiro tem a vantagem de entender o português, mas há palavras com outros significados. Então, é conhecer o lugar que o recebeu". 

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